quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Olá,
Começo a sair do longo inverno do luto. Esta primeira postagem é um texto escrito após a leitura do livro Valentia, de Deborah K. Goldemberg (Grua, 2012), querida mestra de oficinas literárias. Não é uma resenha nem uma crítica abalizada de especialista. Foi escrito sob o efeito da paixão que me inspirou Samaúma, o protagonista desse romance de formação. É isso. Enjoy!
manon+
 
Como se fez um valente
            Samaúma vive. Não a árvore, mas o homem, em carne e ossos, valentinas e deusdetes. Traído pelos deuses, ele acontece à revelia de si mesmo. Enraíza-se homem pela educação que renega, pela guerra que não quis lutar, pelo valente que não desejou ser, pelo facínora que acabou se tornando.
            A força de Samaúma, mestiço de europeu e índio, nos primeiros rabiscos já espanta. E espanto haverá a cada página, a cada sôfrego desespero, a cada instância que o aguarda nas curvas do Tapajós e nas aldeias revoltosas. Já nos começos somos rendidos pelo caráter do anti-herói do Norte nesse thriller existencial. O leitor, aturdido, seguirá desvelando o cristal insuspeito que se esculpe em sobressaltos. Engendra-se nas vísceras da alma o homem-leopardo, enquanto a engrenagem cabana se tece ao largo, até atingi-lo e exigir-lhe reação. Nada de ficar nos bastidores como o capataz teórico do líder, a vomitar belas letras e articular estratégias e logísticas. Afinal, com a Cabanagem, a vida chega-lhe sem paraquedas.  
 
        Samaúma – uma vez permitida a entrada da sua voz em nossa consciência, não se pode mais ignorá-la. Sobretudo por causa do rumor da profana religiosidade desse judeu-cristão, agnóstico, ateu; enfim, homem-fera na violência amorosa dos afetos extremos que jorram incontidos, rasgando-se no trajeto com o anzol da dúvida metafísica. Acima da polifonia dos descendentes cabanos, sua voz prospera: em Samaúma a pedra viva do vir-a-ser grita em surda e transparente angústia.
         Debate-se, resiste, quer fugir àquele fogo secreto que começou não sabia onde, exagerou-se nas veias e iria desaguar em praias ensanguentadas. Virou barco sem rumo, navio fantasma conduzido pelas tormentas caprichosas de oceanos urgentes, um sol negro a arder-lhe no espírito toldando o vislumbre de frágil felicidade. Então ele era só passagem – por isso não saberia ancorar na altiva Valentina, rocha solar em porto seguro.
 
        O tempo batia-lhe à porta, havia de se despedir da ladainha dos batas-mentores, espectros a perseguir-lhe os calcanhares da alma. Urgia-lhe ser. E ser no acontecer. Transmuta-se, despe-se da falsa compaixão de literato e a contragosto abre as comportas para o lutador destemido e respeitado.
 
         À sombra do destino extemporâneo a exigir ação premente afirma-se então no amor fati o homem-gigante. Ainda relutante no altar do Cristo Paixão, o solitário avatar também abandonado pelo Pai, cumprirá a sina adversa, ao invés do sonho valentino.
 
        Na escaramuça dos campos de batalha a guerra maior seguia sufocando-o de dentro, naquele negrume sem paz. Sorrateira, a morte contemplava o seu reverso e aguardava sem pressa o instante da perfeita armadilha. Espreitava-lhe em cada curva, nos tensos tropeços, nas veredas suicidas daquela revolta. General nos artifícios da luta, todavia soldado raso a obedecer ainda ao ex-comandante morto, finalmente foi pego. Aceitou aquela derradeira refrega quase sem peso, sob a qual iria sucumbir. Antes fortalecido no aleatório da peleja, hoje triturado, mastigado e cuspido para morrer, é na última solidão que enfim se reconhece. 
 
         O leitor percebe: Branches o receberá com um sorriso vitorioso do outro lado do espelho; e Valentina, com o amor mudo de outrora, finalmente aceitará o enlace daqueles destinos paralelos que se chocaram na espiral do improvável... Deusdete?
 
          Não perca tempo, vá banhar-se no vermelho de Samaúma.

3 comentários:

  1. Querida Helena, em primeiro lugar, que bom saber que Valentia a despertou do seu interlúdio blogueiro. Isso é vida, que vai e vem e jamais cessa de ser isso - oceano. No mais, como lhe disse, o sonho de todo escritor é encontrar um leitor que se entregue ao seu livro e ame seus personagens como apenas nós os amamos. Você realizou meu sonho! Antes de você, apenas eu o amava tanto. Após a publicação, às vezes, relia trechos como se tivessem sido escritor por outra pessoa e o encontro com Samaúma me fazia sorrir. Que bom ter você ao meu lado. MUITO OBRIGADA pela belíssima resenha! Ficou linda. Você realmente tem um talento para a prosa poética, viu! beijos, Deborah

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    1. Querida Deborah, feliz fico eu que tenha apreciado esse pequeno texto, arroubo de paixão em tintas barrocas fora de tempo e lugar. É um privilégio compartilhar esse amor por Samaúma e agradeço-lhe por isso. Seu brilhante romance merece uma legião de outros apaixonados leitores!
      Um beijo carinhoso,
      Helena

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    2. Helena, excelente resenha. Estou aprendendo a escrever crítica, e vejo bastante força crítica aqui. Parabéns! Dê uma passadinha no meu blog e deixe suas ideias sobre as resenhas que escrevi lá, na página "My Reading." Vou gostar de ler. (http://vivianschlesinger.blogspot.com.br)
      beijo
      vi

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